CAPÍTULO UM: OTÁVIO
“desde que eu consigo me lembrar, me chamam de otávio…
quero deixar claro desde já que esse não é o meu nome,
e eu nunca quis que fosse.”
o policial sentado bem em frente bebe um minúsculo gole de café recém passado que reflete com a luz a mesma cor de sua pele, enquanto espera que o suspeito continue seu monólogo, já fez isso tantas vezes que nem se dá mais ao trabalho de elaborar tantas perguntas, elas vão sendo respondidas sozinhas.
em sua grossa mão esquerda, daquelas que já trabalharam pesado demais e que entregam a pressão sanguínea desregulada, ele tem o copo descartável que ficou com uma gotinha do lado de fora, ao repousar o copo na mesa ela vai escorrendo pela borda de plástico e manchando a mesa de cor cinza clara. o rapaz em sua frente não se chama mesmo otávio — descobriram em menos de cinco minutos de investigação — mas isso nem o interessava tanto, o que lhe interessa agora é saber como aquele magrelo deixou que isso chegasse nesse ponto. sua testa se franze ao pensar nisso, mas tenta manter uma pose séria e impenetrável, o sujeito de mãos trêmulas continua:
“ela sempre me chamou assim, não conseguia saber direito quem eu era… mas eu sempre cuidei muito bem! fazia comida, limpava, dava banho e vestia… a culpa não foi minha, eu nunca quis que isso acontecesse…” ele desaba em lágrimas invisíveis, o som de seu lamento preenche a pequena sala de interrogatório.
“rapaz… acredite você ou não, aconteceu.” ele coça a pele perto da clavícula, isso faz com que o patch bordado em seu uniforme fique levemente torto, com cheiro de amaciante, mas desgastado pelos anos de uso, nele lê-se: “BRAZ O+” ao lado de uma bandeira do brasil.
em sua frente, mais lágrimas, para braz que não as vê caindo, são falsas.
“aconteceu e você viu acontecendo, certo?” ele dá uma pequena pausa “não é de hoje que ela estava doente, ia acontecer, mais cedo ou mais tarde” suas palavras são polidas, porém acertam o suspeito como uma facada — lógica e racionalidade fazem mal a qualquer um que esteja a mercê de tanta carga emocional como ele parecia estar.
“como ela começou a ficar doente?” o policial se ajeita na cadeira, percebendo que iria levar um tempo até ter algo sólido, e parece pensar consigo que vai precisar de mais uma garrafa de café… ou duas.
“na minha memória ela não começou, ela sempre foi…
a recordação mais distante que eu tenho dela, envolve ela me chamando assim, então ela já estava com a memória fodida, mas se o meu tio — o otávio de verdade — a lembrava de quem eu era, ela ainda conseguia entender... ou, pelo menos, não revidava.” ele dá uma pausa em sua fala para refletir, como se escolhesse as palavras com muito cuidado.
“depois que ele morreu, ela ficava muitíssimo irritada caso a corrigisse, então eu assumi esse personagem e, para ela, eu fui o otávio.
acredito que fui bem nesse papel.” o suspeito olha agora para a parede branca atrás de braz, sua expressão não entrega tudo que sente, seu rosto fino com a pele da bochecha e lábios ressecada pelo frio. os densos cabelos negros parecem não serem lavados semanas, assim como as suas roupas, que não trazem marcas famosas ou qualquer sinal de que tenham menos de vinte anos de uso.
“como era o papel?” a pergunta espanta o rapaz, que ajeita a postura.
“perdão?” ele pigarreia, o policial repete a pergunta, coisa que desgosta fazer:
“o papel que você estava interpretando, como era ele?”
pode-se ouvir os neurônios do garoto trabalhando, como se não fosse acostumado a responder tantas perguntas, uma de suas mãos agudas coça o queixo enquanto a outra se aquece, enfiada no meio das coxas que malemal são aquecidas por sua fina calça jeans surrada.
“o de… você não vai entender… bom, o de viado, eu acho”
ele deixa escapar, olhando para baixo e falando com receio, surpreendendo os ouvidos alheios, ele parece estar tentando ser coerente, enquanto braz o encara confuso. “veja, esse meu tio, diziam que ele era meio boiola, nunca teve esposa e era bom demais com essas coisas de cuidar da casa, do jardim e tal. eu não tenho essas frescuras, não que eu tenha preconceito nem nada, é que eu tinha que interpretar um papel pra cuidar dela, fingir que eu era ele, coisa que nunca fui, graças a deus.”
braz observa o garoto cruzar os braços, sua feição é uma mistura de nojo com raiva, com a boca fechada passando com a língua por fora dos dentes, e o policial escuta atentamente todos os detalhes que pode: a respiração, sua pulsação visível no pescoço, a pequena mancha roxa em sua mão, suas unhas sujas e seu tênis imundo.
o suspeito continua, sua fala é bastante pausada: “assim, não que ele fosse ruim, ele sempre me tratou muito bem, mas não era másculo e tal, eu tive sorte de ter meu pai por perto até uns anos, cê sabe que ele já trabalhou aqui na delegacia né? era o china, pode perguntar pra qualquer um mais velho e vai se lembrar dele…” o policial o interrompe: “eu tô interrogando você, não seu pai.”
por mais que não custasse nada deixar o piá divagar em seus pensamentos, ele sabe que isso pode ser uma tática, nem se lembra qual, mas não levaria a nenhuma resposta ou pista.
“esse seu tio, ele não foi como um pai pra você?”
“não… credo, ele não tinha muito essa figura de pai, era mais na dele, ele cuidava de mim, mas de uma forma diferente. ele cuidava de mim como se cuidasse da minha vó, e eu sei lá, acho que não era o certo” o policial bebe mais um gole de café morno “não que ele fosse ruim, mas é que eu acho que eu não confiava muito nele… ele nunca tentou fazer nada, sabe, comigo.” o silêncio na sala, cortado a cada segundo pelo tiquetaquear do relógio de parede, pressiona o guri a continuar falando, mesmo não sabendo muito bem o que queria dizer:
“ele era um cara bom, morreu do fígado, igual meu pai.”
“quando foi isso?”
“cinco anos atrás… nem fomos no enterro, a vó não ia entender.”
“então você tava interpretando um papel de viado?” o policial tenta não sorrir enquanto pergunta, sabia que isso só piora as coisas. mas quer realmente entender essa história.
“eu…” o garoto bufa, passando a mão no rosto e inspirando fundo “eu só tentei fazer ela feliz!” solta seus braços finos em direção do chão e se encosta para trás, reclinado na cadeira.
“sendo como o seu tio morto?” braz sabe que essas palavras cutucam alguma ferida, por isso continua, insistente.
“cuidando dela… porque se eu fosse cuidar do meu jeito ela não ia aguentar, por mim não importa se a porra do feijão foi fervido e se a roupa de cama tá lavada, mas ela não, era uma velha muito sarna, cê sabe como são os velhos quando ficam doentes? ficam insuportáveis, é tudo do jeito deles, mas eles são velhos demais pra fazer, então querem que você faça.” ele fica ofegante depois de atropelar todas essas palavras pra fora do peito, “é assim que era.” ele conclui, desviando sempre o olhar das grandes íris castanhas de braz, que observam demais.
“me conte mais sobre ela, por favor, o que ela pedia pra você fazer?”
“eu preciso de um tempo, posso fumar um cigarro?” ele bate os pés ansiosamente “eu nem deveria estar aqui, eu posso ir embora se eu quiser, eu conheço a lei” ele fita pelo máximo que consegue os grandes olhos do policial, que faz beiço e ergue as sobrancelhas: “seria meio suspeito se você fosse” e o garoto sabe que é verdade “mas um cigarro cai bem, venha.” ele se levanta, guiando o rapaz para os fundos, em direção ao estacionamento da velha delegacia.
fumam calados, o frio fazendo a fumaça correr deitada e chegar até a janela da copa, lá dentro, a zeladora xinga mentalmente os dois homens porcos, que não se importam com as duas horas que ela gastou tentando deixar aquele lugar com aroma agradável, a velha passa pela frente dos dois, seus cabelos branquíssimos reluzindo com o sol de onze horas, ela carrega um balde de água suja com um pano mergulhado dentro, cumprimenta o policial com a cabeça e segue para bater o ponto do almoço.
“o cabelo dela parece o da minha vó” o rapaz respira fundo, franzindo a testa. braz não sabe exatamente o que isso significa.
“eu acho muito engraçado quando elas tentam pintar… e fica roxo” o agente taca a bituca para longe, rindo nasalmente, sua sogra faz isso, às vezes. ele sabe que essa pausa pode ser muito proveitosa — se ele souber conduzir o interrogatório assim que voltarem. o suspeito parece aproveitar aquele cigarro como se fosse o último, como não tinha prova alguma contra ele, por um segundo braz sentiu uma pontada de dúvida e compaixão pelo garoto, afinal, ele pode muito bem estar sendo enormemente injustiçado.
a parte mais difícil do seu trabalho não é saber perguntar, saber preencher papelada ou acertar o alvo nos treinamentos de tiro, é tentar lidar com o fato de que pode estar acusando um guri totalmente inocente, que provavelmente não fazia o melhor trabalho cuidando de sua avó doente, mas estava dando seu melhor para mantê-la viva pelo maior tempo que pôde, até que não pôde mais.
“venha, ou a gente vai acabar congelando aqui fora.”
o garoto traga o resto do cigarro de uma vez só até chegar no filtro e lança a xepa na mesma direção que viu o policial fazer.